sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Um pouco de realidade por dia, por favor

Doralice está prestes a fazer 60 anos. Na comemoração deste ano, espera reunir os cinco filhos que, “com a graça de Deus, já estão todos criados”. Cinco filhos que são a única herança que o marido traste a deixou, quando a abandonou para viver uma vida mais ordinária, dividida entre os goles de bebida com os amigos e, de vez em quando, um pó para dar uma coragem para seguir em frente.

Doralice é uma senhora que não impõe respeito. Tem estatura mediana, sobrepeso, anda mal trajada e chora com facilidade.
Foi por esta fragilidade, talvez, que ela teve a casa devastada pelos policiais militares, que não ouviram os gritos da senhora pedindo que lhe poupassem pelo menos um pouco. Que não quebrassem os vidros de sua janela, ou então que não revirassem o pote de leite do mês ou, mais ainda, não destruíssem a beliche que lhe servia para acolher os netos.

Conheci Doralice em 2006, quando fui escalada para ir à sua casa, um barraco feito metade em alvenaria e a outra metade com restos de madeira. Nesta data, Doralice havia ligado para redação para denunciar o estrago que haviam feito em sua residência. Cheguei ao Conjunto Jefferson e me deparei com uma Doralice chorando, apontando os móveis quebrados dos três pequenos cômodos da casa.
“Foram os policiais, que invadiram minha casa, estragaram tudo e foram embora como se eu não fosse nada”. Naquele momento, o pouco de dignidade que a catadora de lixo ainda tinha reservado havia se perdido. O bairro inteiro olhava horrorizado ao que havia se passado com a senhora, mas nenhum deles se prontificou a ajudar a reorganizar a casa.
Ela contou que a invasão foi ocasionada por conta do pequeno delito que seu filho caçula havia cometido. Pulou a catraca do ônibus que servia o bairro e foi denunciado pela poderosa empresa de coletivos da cidade. Travessura de menino, dizia a mãe.
Mais tarde, acabei descobrindo que a Polícia estava atrás de um outro filho de Doralice; este sim envolvido com o narcotráfico, mas a mãe jamais soubera do paradeiro do filho.

Versões anotadas, cheguei à conclusão de que jamais saberia da verdade sobre este caso. Pode ser que tenha havido truculência dos policiais em busca do traficante ou pode ser que a mesma truculência tenha sido ocasionada a mando da empresa de transportes, revoltada com a onda de assaltos dos quais os cobradores eram vítimas quase que diariamente na linha do Conjunto Jefferson.
“Aqui ninguém quer a linha do Jé não. É arma na cabeça e dinheiro entregue aos caras. Fechamos os olhos se a molecada pula a catraca. Não tem como arranjar encrenca com eles não”, me relatou posteriormente o cobrador da linha que serve ao bairro.

De fato, o Conjunto - cujo único acesso é uma estrada longínqua -, é sinônimo de exclusão social. É um local que reúne as famílias que viviam clandestinamente na Favela do Cisne e, para que não ficassem aos olhos da classe média, foram todas obrigadas a ocupar os novos loteamentos. Ali, eles expandiram as próprias residências com os famosos “puxadinhos” e a ocupação se tornou intensa.

Nessa ilha em que foram abandonadas as famílias, Doralice se mantinha com os cinco filhos e com a renda que ganhava como catadora de recicláveis do Lixão da Volta Fria. Empurrava diariamente seu carrinho pela cidade até chegar ao depósito de lixo, onde tentava triar alguma coisa para revender.

Enfrentou épocas de degradação completa. Tempos em que o quilo do papel lhe rendia míseros três centavos, isso quando alguém estava disposto a comprar. Perambulou em meio à imundice do lixo descartável da classe média. Cortou os dedos algumas vezes, pela quantidade de vidro jogada em meio ao lixo orgânico sem nenhuma proteção.
Passou dias de desespero, em busca de algum alimento em boas condições que tenha sido jogado por uma família que, ao contrário da dela, jogava fora os alimentos ainda consumíveis. Ou então passava o dia em busca de algum par de tênis para os filhos. Vida ingrata, esta de Doralice. As famílias mais abastadas tinham sempre o péssimo costume de jogar apenas um pé de tênis no lixo, de modo que ela nunca conseguia separar um par para os meninos. Mesmo assim, guardava o pé direito e continuava revirando o lixo em busca do esquerdo. Às vezes, tinha sorte e encontrava a combinação alguns dias depois.

Depois da desativação do Lixão da Volta Fria, foi trabalhar na cooperativa da Vila São Francisco. Cooperativa que, de fato, não existe. Dos 85 cadastrados, apenas 24 permanecem no local. O restante desistiu do ofício. “É que o governo começou a pagar um salário mínimo como ajuda, então tem gente que pega essa grana e nem precisa ficar aqui catando lixo”, conta.

Azar o deles. Hoje, o mercado está bom. O quilo do papel chega a R$ 0,40 e o da latinha a R$ 2,80. Doralice consegue tirar por mês R$ 500, que são somados aos R$ 500 de sua mãe, conhecida no centro de triagem como Tiazinha, por conta dos seus 80 anos e de sua dificuldade para falar.
Tiazinha anda com um facão em punho e um avental, cujo bolso já estava cheio de “achados”. “Olha só, um batom Nivea. Que chique”, dizia ela, ao guardar a maquiagem.

As duas hoje mantêm um sorriso alegre, motivado pelas boas vendas de recicláveis. Está na moda ser ambientalmente correto. As residências estão separando melhor o lixo e Doralice só agradece por isso. “Claro que ainda tem muita gente por aí que mistura tudo mesmo, não está nem ai”.
Da última vez em que encontrei Doralice, ela ainda vestia o uniforme laranja, o mesmo lenço prendendo os cabelos e as luvas sujas. “Não tá me reconhecendo não, menina?”. Claro que sim, eu a reconhecia. Reconhecia e poderia descrever a forma como chorava copiosamente naquele dia em que a conheci.

Mas preferi não lembrá-la disso. Doralice estava feliz. Vinha me contar dos filhos e comemorar sua principal conquista: “Consegui comprar um celtinha, acredita?”. Eu, incrédula, não acreditava. Eu achava que ela havia se perdido como tantos outros que preferiram uma vida mais marginal, recebendo subsídios de governos e ajuda de entidades. Eu achava que os filhos haviam lhe roubado todo o pouco que restou e que ela, desesperada, estava nas ruas pela mendicância. Afinal, pedir esmola é tão mais fácil que revirar lixo para vender...

Eu achava que sua vida terminava com um soneto trágico, cruel, sujo e vazio.
Mas passei a acreditar que sim, a catadora de lixo devastada pela ingratidão da vida tinha agora um carro de passeio, que usava para trabalhar, coletar materiais e ir ao parque nos finais de semana. “Acredito sim. Parabéns, a senhora merece”.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

O fim é o começo de um novo fim.

Sete anos me separam daquele mês de junho de 2003, quando eu cheguei à redação de O Diário. Sete anos que significam toda a minha vida profissional até agora. Sete anos que, a partir de agora, representam apenas uma parte da minha história.

Hoje é o dia em que a minha vida se divide entre o antes e o depois. Não necessariamente entre o bom e o ruim, nem entre o errado e o certo.
Mas é inegável que dentro das minhas malas prontas há muito mais do que experiência profissional e de vida. Empacotar os sentimentos, as lembranças e as lições é mais difícil do que eu imaginava.

E é muito ruim você deixar para trás alguma coisa em que acredita. É fácil você se livrar das coisas que não gosta, que não valoriza, que não admira. Mas tente virar a página de algo em que você sempre acreditou, como eu sempre acreditei no trabalho que eu fiz até agora. É como deixar alguém que você ama para trás para seguir em algo que você considera ser correto pra você, algo que eu também já fiz e sei o quanto dói.

Escolhi um novo projeto pra mim. Um que vai me dar mais oportunidades pessoais e de mercado. Integro a partir de agora a equipe do Metrô News, como correspondente da Folha Metropolitana em Mogi.
Mas esse não é o projeto da minha vida. E até meus novos editores sabem disso. Eu não nasci para trabalhar em casa sozinha, quero ficar em redação. Mas é hoje este projeto que pagará meus estudos de pós-graduação, especialização no exterior e me dará tempo hábil para concretizar antigos sonhos. É ele quem vai me dar a base para conquistar as coisas futuras, coisas que eu já sei o que são e que sempre persegui conquistá-las.
E tem dado certo. A idéia é ficar como correspondente e ir abrindo mercado em São Paulo através do Metrô News, jornal que tem 120 mil exemplares de circulação diária. Ciente dos meus planos de ingressar na Capital, o editor-chefe já me deu a boa notícia de que no final de semana irá inserir uma matéria minha sobre a indústria regional no Metrô. Foi bem rápido até.

E ao passo em que meus olhos se enchem de lágrimas ao pensar em deixar na redação todos os meus colegas – mais que isso, amigos – eu me encho de coragem para tentar. Afinal, deixar de tentar é a justificativa mais covarde que existe e, como diz a Eliane, o mercado está receptivo para comprar a produção de quem sabe produzir. Basta você ter confiança no que faz e ir em frente.

Eu queria agradecer individualmente cada um dos que conviveram comigo durante todo este tempo, mas tenho certeza de que, de alguma forma, eles sabem da contribuição que tiveram pra minha formação.
E juro que meus olhos não estariam marejados se não fosse essa coisa tão especial que eu descobri no Diário, que é uma espécie de cooperativismo entre os jornalistas. Nunca vi equipe tão unida em torno de um só objetivo: a notícia.
Tenho medo de ter me tornado dependente da ajuda dos colegas, tenho medo de sentir falta de ajudar em matérias que nem são minhas. Tenho medo de encarar tudo isso sozinha agora e ser engolida pelo mercado, que é formado de jornalistas super-egos em busca de um furo.
Mas isso não vai acontecer.

Agradeço a cada um que teve a paciência de me aturar. Mas agradeço mais ainda àqueles que estão, sinceramente, torcendo por mim a partir de agora.